Letícia Carvalho, brasileira, foi muito recentemente eleita Secretária-Geral da International Seabed Authority (ISA), Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, na língua de Letícia, e nossa.

Letícia Carvalho, brasileira, foi muito recentemente eleita Secretária-Geral da International Seabed Authority (ISA), Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, na língua de Letícia, e nossa.

A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) é uma Organização intergovernamental estabelecida pelo Acordo 1982 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) e pelo Acordo de Implementação 1994.

A eleição teve lugar na 29ª Conferência da organização, em Kensingston na Jamaica, em 2 de agosto último, e contou com um empenho muito forte do governo brasileiro, assente num processo coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), Ministério das Minas e Energia, e da Marinha Brasileira, a que se juntou o dos responsáveis portugueses no assunto.

A eleição esteve longe de ser pacifica, ou até de assumir o tradicional formato da renovação na continuidade, com a concorrente a angariar 79 do total de 113 votos, contra os restantes do seu opositor o britânico Michael Lodge.

Lodge concorria a um terceiro mandato, mas enfrentado críticas muito especificas, que iam de incongruências técnicas a deficiente administração funcional e financeira da organização, bem como de um apoio à mineração desregulada no fundo oceânico, críticas oriundas de diversos quadrantes, e da própria Inglaterra, o que levou o candidato a concorrer agora por Kiribati, uma república soberana, de 33 ilhas dispersas no meio do Pacífico, entre a Micronésia e a Polinésia.

Letícia Carvalho nasceu no Rio de Janeiro em 1973, mas passou os seus primeiros anos em Brasília, para onde acompanhou os pais, no prosseguimento das suas vidas e carreiras de funcionários públicos, o que a fez trocar, de acordo com um testemunho interessante, as praias cariocas, pelo desejo dos seus pais de terem uma casa com jardim.

Estudou oceanografia na Universidade do Rio Grande do Sul, e desenvolvimento sustentável, economia e política, no mestrado feito na Universidade de Brasília.

Especializada em hidroacústica, tem uma larga experiência em campanhas oceanográficas, passada nos conveses e entre a instrumentação científica sofisticada de uma série de navios.

E antes, desempenhou um importante papel na conceção e implementação do quadro regulatório brasileiro para a exploração de petróleo e gás em offshore, e na gestão dos respetivos royalties.

Na altura da eleição chefiava a Divisão Marinha e Águas Doces da ONU, o PNUMA, com sede em Nairobi, e o seu mandado vai abarcar o período 2025/2028, durante o qual são esperadas – finalmente – importantes decisões.

Pela sua vida académica, e depois pelo desempenho profissional, às competências científicas e de gestão, adicionou as jurídicas, e posteriormente, e que serão de suma importância, as diplomáticas, adquiridas no ambiente cosmopolita e multi-cultural, dos gabinetes e corredores da ONU.

A sua missão, típica deste organismo, não é decidir, mas preparar o processo decisório, que será então feito pelos estados membros.

Sem recuarmos muito no historial da ISA, recordamos, que esta é a única agência que sustenta que os fundos marinhos pertencem a toda a humanidade, e que estão ali colocados para benefício desta, o que abarca, portanto, até os países não-costeiros, e desta maneira facilmente se constata que o assunto da possibilidade da mineração naqueles fundos, é nuclear à sua agenda.

“A ISA deve facilitar a mineração em alto-mar. Foi criada para isso.”

São palavras da própria nova secretária, pronunciadas antes da sua eleição, completadas da seguinte forma:

“Mas ao fazê-lo, precisa de cumprir a promessa de não prejudicar o meio ambiente.”

Uma das traves-mestras do seu mandato, também nas suas palavras, vai ser a transparência da ISA. No seu interior, na circulação da informação entre os membros, e no exterior, no contato da organização com o mundo. E dá como exemplo o facto da organização receber e manusear uma quantidade enorme de dados de toda a espécie, mas sobretudo científicos, mas não possuindo posteriormente o necessário sistema de tratamento e divulgação.

Depois das enormes perspetivas colocadas e goradas na 28 ª Sessão, em 2023, de que iria ser tomada uma decisão, promessa feita em 2021, a partir de 2025 dificilmente deixará de existir um rumo para o assunto, expresso em normas ambientais.

Entretanto, também recordamos, que estas normas apesar de serem juridicamente vinculativas, dependem de uma pormenorização, nomeadamente técnico-científica, e esta não é necessariamente vinculativa, o que faz introduzir no processo a figura das orientações.  

As expectativas colocadas na eleição de Letícia Carvalho são imensas, e centram-se sobretudo, como já vimos, na autorização ou não da exploração mineira do fundo do mar: com que regras, no primeiro caso, ou sob que argumentação no segundo. E em ambos, em conformidade com um quadro legal a criar.

De todo não se espera de si o mesmo que de Dalva, a personagem do magistral conto/crónica do mesmo nome, escrito por Rubem Braga em 1953, e cuja trabalho é meramente escoltar documentos por entre os meandros da burocracia, fazendo avançar ou parar aqueles, consoante os interesses da navegação de Dalva na altura.

Quando colocada em presença de S.Pedro, que não acompanha de perto a vida carioca, e perante a pergunta sobre o que é ela fazia, respondeu com clareza: 

Eu empurrava papel.



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