Excluindo as pinturas noturnas – até naquelas onde pontifica o luar -, estou em crer que a maior maestria de uma marinha, reside no equilíbrio entre o azul e o verde, ora do céu ora do mar, de tal forma o cromatismo de um influencia o outro, havendo casos, e bem sucedidos, em que o resultado é um cinza (carregado ou suave) quase comum.
Pancetti, Giuseppe Gianinni Pancetti, ou melhor José Pancetti, teve uma evolução lógica até conseguir pintar o mar. Pintor de paredes na construção civil, pintor de navios na Armada Brasileira, e finalmente de marinhas.
E também na caminhada ao cimo da terra, já que depois de nascer no interior paulista (em Campinas, em 1902) conseguiu chegar ao litoral da Bahia, depois de navegar no Mediterrâneo, e morrer no Rio de Janeiro, em 1958.
Outra das suas paixões, para além da pintura, foi a Marinha Brasileira, onde ingressou em 1922, para se retirar em 1946, com o posto de segundo-tenente, por motivos de uma saúde debilitada, que o levou a regressar ao chão do interior, e a internar-se em Campos do Jordão e Poço de Caldas.
A saúde fragilizada não era de forma alguma alheia à vida de privações e aventuras, dos tempos anteriores à disciplina da marinha e da fama como pintor merecidamente consagrado.
Na marinha de guerra brasileira, rapidamente as suas qualidades de pintor se fizeram notar, não tanto como aguarelista de pormenores, mas como pintor de cascos. Bem pintados estes, foram-lhe atribuídos os conveses.
E novamente bem pintados os conveses, passou para os camarotes. E quando estes ficaram impecáveis, e sobretudo os dos comandantes, o Almirante Gastão Motta não teve dúvidas, e criou propositadamente o quadro de especialistas de pintura “Companhia de Praticantes e Especialistas em Convés”, chefiado como não poderia deixar de ser por Pancetti, com a categoria de instrutor.
Já na reserva/reforma, em 1952, quando era um dos melhores pintores brasileiros – de uma geração brilhante, onde existem pintores como Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Vicente Rego Monteiro, entre outros – e amplamente reconhecido internacionalmente, teve a imensa alegria de ser promovido a primeiro-tenente.
E julgo que não por acaso, entre os diversos auto-retratos que pintou, existem dois muito significativos do quanto levou a sério a sua carreira na marinha, porquanto num fez-se representar como simples marinheiro e noutro já como oficial.
Em 1932, viu publicado o seu primeiro trabalho no jornal A Noite Ilustrada, e em 1941, ganhou o prémio de viagem ao estrangeiro – que não pode usufruir por motivos de saúde – no Salão de Belas Artes, no núcleo Moderno, e em 1945 fez a sua primeira exposição individual com cerca de setenta quadros. Em 1948 recebeu a medalha de ouro do Salão de Belas Artes, para em 1950, estrear-se internacionalmente, na Bienal de Veneza, complementada no ano seguinte pela presença na Bienal de S.Paulo, provavelmente as duas mais importantes bienais do planeta.
Em 1939, participa em Lisboa numa das suas primeiras exposições coletivas internacionais, que integrava o melhor da pintura brasileira, como por exemplo Cândido Portinari.
Por aquela altura também viaja bastante, engajado nas equipagens dos navios da marinha brasileira, e gasta o tempo das suas escalas, não onde era habitual os marinheiros passarem o seu, mas nos grandes museus, sobretudo da Europa, como na viagem que fez no Siqueira Campos, em 1934, e onde tem a oportunidade de ver exposta a pintura impressionista, e de onde regressa com os trigais e os girassóis de Van Gogh prontos a serem incorporados na sua paleta.
Contudo, anos mais tarde, em mais uma das muitas profissões de fé na sua qualidade de (velho) marinheiro, relata as suas vivências de então de uma outra forma:
Como velho marinheiro, os únicos museus do mundo que conheci foram os bas-fonds e cabarés dos portos onde andei.
Naquele mesmo ano de 1950, dá porventura o mais importante passo na sua vida e na sua arte, que foi a decisão de rumar e estabelecer-se na Bahia, mais precisamente em Salvador, na Cidade de S.Salvador da Bahia de Todos os Santos, o Oriente do Mundo.
Mas antes de chegar ao mar da Boa Terra, houve todo um longo caminho a percorrer.
Na década de dez do século vinte, não era raro entre os imigrantes italianos de S.Paulo, face às dificuldades económicas para vingar no novo país, as famílias numerosas colocarem alguns rebentos a viver em Itália, onde existiam alicerces mais sólidos, sobretudo nas casas paternas dos avós que não chegavam a fazer a viagem.
Foi o que aconteceu a Pancetti e a uma irmã, que vão viver com a numerosa parentela que possuem espalhada pela Toscana. Aqui, depois de uma série de empregos sem sucesso em terra, um tio conseguiu incorporá-lo na marinha mercante italiana.
Com o veleiro Maria Rosa, entre Génova e Alexandria, percorreu o Mediterrâneo. E com as suas pernas, as ruelas, becos e rampas das cidades portuárias ao longo das rotas, sobretudo Génova.
Até ao dia em que se meteu em sérias encrencas quando se esqueceu de regressar ao seu navio, e de onde apenas conseguiu sair no porão de outro navio, arranjado às pressas pelo consulado brasileiro, e no qual em fevereiro de 1920, desembarca em Santos.
Ia começar a carreira do pintor e marinheiro José Pancetti, que, entretanto, já deixámos na Bahia.
Naquela altura a Bahia prepara-se para iniciar um processo de renovação artística, centrada numa geração de novíssimos artistas plásticos, como Carybé, José de Dome, Carlos Bastos, Mário Cravo, Genaro de Carvalho, ou o fotógrafo francês Pierre Verger, e mais tarde Floriano Teixeira, na pintura, e João Ubaldo Ribeiro na literatura, e a qual viria a ser aglutinada pelo escritor Jorge Amado, quando ele vem viver definitivamente para a cidade, a partir da sua casa na Rua Alagoinhas 33, no Rio Vermelho, e cimentada pela presença, entre 1959 e 1964, da Arquiteta Lina Bo Bardi, responsável pelo projeto e instalação do Museu de Arte Moderna de S.Paulo (o MASP) e que na Bahia, funda e dirige o Museu de Arte Moderna da Bahia e o Museu de Arte Popular do Unhão, à Gamboa.
A estes é necessário acrescentar o músico erudito e experimentalista Walter Smetak, nascido na Suíça, e falecido na Bahia, formado no Mozarteum de Salzburgo, e como concertista, no Conservatório de Viena, de um curso onde também fazia parte Pablo Casals, e lado a lado, as grandes figuras da Música Popular Brasileira, que foram Dorival Caymmi e João Gilberto.
Esta renovação da arte e cultura baiana, assenta na modernidade, mas tem os seus alicerces bem fundos, no barroco baiano e do Recôncavo, com as suas 365 igrejas, mais mosteiros e conventos, cuja grande figura é nem mais nem menos do que o Padre António Vieira, nome maior da cultura de língua portuguesa, clássico entre clássicos, que vive vários anos na Bahia, a par das diversas viagens no Atlântico Sul, e que morre precisamente nesta cidade em julho de 1697, e também numa fortíssima cultura popular escrita e declamada na literatura de cordel de Cuíca de Santo Amaro e do seu discípulo Rodolfo Coelho Cavalcante, e de proveniência africana, nomeadamente de Angola e da Nigéria, expressa na religiosidade sincrética do candomblé, onde se cultua Xangô, Iemanjá, Oxóssi, etc.
Munido deste passado, e do presente que José Pancetti vem encontrar na Bahia, foi possível construir a ponte para o futuro, com o Cinema Novo de Glauber Rocha, e sobretudo de Nelson Pereira dos Santos, mais a poesia de Sosígenes Costa, Carlos Coqueijo, Capinam e Waly Salomão, e claro, o Tropicalismo de Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Atrevo-me a dizer que o período baiano corresponde à grande fase da obra de Pancetti, vivido e pintado ao longo da costa amena que vem do Abaetê, e corre por Itapuã, Pituba, Barra, Rampa dos saveiros, Montserrat, Bonfim, Peri-Peri, e vai por aí.
E não são apenas as marinhas a impressionar pela beleza. São também cenas do quotidiano da gente humilde do povo brasileiro, habitações, quintais, morros, vegetação, e principalmente povo.
Mas no regresso sempre maravilhoso aos seus adorados barcos, é de realçar a série extensa que dedica aos armazéns ribeirinhos do Rio de Janeiro, e sobretudo aquela em que documenta as docas da ilha de Mocanguê, no meio da Guanabara, onde funcionavam na altura os estaleiros e oficinas do Lloyd Brasileiro, a mítica companhia de navegação brasileira.
A partir de um determinado momento, por volta de 1955, na minha opinião, a obra de Pancetti começa a ser deficientemente avaliada – com a designação de novo Gauguin – e pior criticada, numa altura em que a arte brasileira se embrenhava na abstração e no construtivismo, mas em que Pancetti permanecia fiel ao modelo da figuração, conservando um vínculo expressivo com a paisagem da terra, mesmo que esta fosse feita de mar, mas nem por isso desprezando o sentido construtivo da forma e a propensão ao decorativismo moderno.
A sua pintura foi repleta de atribulações com a crítica, a maioria desta com a recusa em aceitar que um tão excelente pintor viesse de pintar navios, e não do sofisticado e complexo circuito de academias clássicas e galerias vanguardistas, e ele teve plena consciência deste estado de coisas, ao ponto de no seu mais famoso auto-retrato, aparecer com um livro que tem por título ismos, que sendo o título de uma obra célebre do poeta espanhol Ramón Gómez de la Serna, é simultaneamente uma alusão à miríade de escolas e correntes, onde provavelmente ele não tinha lugar em nenhuma.
Mas nada disto felizmente consegue afetar o enorme prazer que sentimos perante as suas telas, espalhadas pelas mais importantes coleções de pinacotecas privadas, e de museus do Brasil e do mundo.
Ao contrário de tantos que pintaram (e bem) o contraste do mar com o céu e a terra, as chamadas marinhas, nos seus quadros é rara a presença do vento, que só contribui para aumentar o prazer – feito de serenidade – de permanecermos ali por um bom bocado de tempo, se possível numa espreguiçadeira boa de lona.
E para além disso, em alguns dos arsenais da Armada Brasileira, disseminados ao longo da costa, em navios a aguardar não menos serenamente o abate, ainda podemos ver cascos e outras grandes superfícies, pintados com um verde belíssimo, conhecido como o verde Pancetti.