Afinal ainda há muito a dizer e a contar sobre as mensagens enfiadas numa garrafa e atiradas ao mar...

Mais azul

Uma excelente revista de assuntos de marinha (até se vende na Bertrand do Chiado!) organizou uma antologia de mensagens encontradas dentro de garrafas lançadas ao mar.

E aquela mensagem foi considerada particularmente interessante.

Era de Paul Gauguin, naquela altura numa das ilhas do Pacífico, quando viu a sua quantidade de azul a reduzir-se assustadoramente na sua caixa, e desesperado, chegou a colocar o endereço do seu fornecedor habitual de tintas, um bem conhecido comerciante de Bruxelas.

Datada, a mensagem permitiu aos estudiosos da obra do pintor, entenderem finalmente a razão de um período da sua pintura caracterizado por azuis suaves e diluídos, bem diferente dos azuis fortes e pastosos que escorrem das suas anteriores telas taitianas.

A abordagem ao assunto das mensagens envolveu uma série de especialistas em temas diversos, que iam do comportamento das correntes marinhas e dos ventos predominantes à superfície das águas, até à crítica literária, passando por entendidos na qualidade de papel e na geometria das garrafas.

Apareceram mensagens mais caudalosas do que o Antigo Testamento, e textos de maravilhosa concisão, a informar fui muito feliz.

Um consultor de tecnologias de informação, depois de salientar a relativa morosidade em causa, não deixou de registar que era uma forma de comunicação tão válida como os sinais de fumo dos índios americanos, ou o bater dos tambores nas selvas africanas.

Já um erudito em fiscalidade, acabou por reconhecer a validade do processo, mas lamentou que todo aquele manancial de trocas se desse sem um único selo, à revelia de qualquer taxação.

Pelo lado científico, foi enaltecido o programa conduzido pelo Observatório Naval Alemão, entre 1864 e 1933, durante o qual foram deitadas ao mar milhares de garrafas, nas mais diversas coordenadas, contendo dentro um formulário, e anotando o capitão da embarcação lançadora, o nome do navio, porto de origem e rota prevista até ao próximo porto, e sobretudo, claro, a data e hora e as coordenadas no instante do lançamento.

O questionário pretendia complementar todas as informações prestadas pelo lançador da garrafa e da mensagem, e, por conseguinte, solicitava-se ao seu recetor que informasse sobre rotas, data de receção, coordenadas, etc, etc.

E finalmente solicitava-se que fizesse chegar a informação ao Observatório, sediado em Hamburgo, ou ao consulado alemão mais próximo.

A 12 de Junho de 1886, O.Diekmann, o Comandante do Paula, um belíssimo três mastros, em rota entre Cardiff, no País de Galles, para Makassar, nas Índias Orientais Holandesas, às coordenadas 32º 49’ Sul e 105º 25’ Este, colocou uma destas mensagens dentro de uma garrafa de gin, e lançou-a ao mar, a qual seria encontrada em 21 de Janeiro de 2018, numa praia de Wedge, na Austrália.

No âmbito dos programas científicos, também foi prestado o devido relevo à autêntica epopeia levada a cabo pelo biólogo marinho George Parker Bidder III, que entre 1904 e 1906 levou a cabo um ambicioso e extenso estudo das correntes do Mar do Norte, baseado entre outras coisas num questionário colocado dentro de garrafas, e que devia ser encaminhado por quem o encontrasse para a Associação Biológica Marinha de Plymouth, com frete antecipadamente pago, e com direito ainda a um xelim de recompensa.

Que foi o que recebeu a Senhora Marianne Winkler, quando em 2015, deu com uma destas garrafas nas margens da Ilha de Amrum, no Mar do Norte alemão, e obviamente com a justa e merecida notoriedade.

Ainda quanto à mensagem de Gauguin, quem a recebeu por último, achou que depois de tanto tempo passada no mar, seria uma transição demasiada brusca fixá-la em terra, e atirou-a ao lago que existe na bordadura do Square Marie Louise, em Bruxelas, e foi ali que uma criança ao lançar o seu veleiro de madeira à água, a encontrou, e a entregou finalmente na morada exata. Onde naquela altura funcionava um consultório de dentista.

Uma outra mensagem, encontrada no interior da garrafa de um conhecido e excelente uísque, não deixou de despertar imensa atenção por parte dos estudiosos.

Uns inclinavam-se, e teorizaram sobre isto, para a transcendência de acionar voluntariamente a finitude da vida, mas outros pelo contrário não observavam mais do que a singeleza de um registo, no preciso instante que se seguiu ao esvaziamento da garrafa.

Mas alguém, não deixou de notar, que se podia tratar simplesmente de um escritor que tinha concluído o seu livro, porque a mensagem dizia apenas:

Acabou



4 comentários em “Correio roll on roll in”

  1. Pedro diz:

    Parabéns Estimado Artur por mais um texto formidável. Agradecido

    1. Artur Manuel Pires diz:

      Muito obrigado, Pedro.
      Saber que alguém gostou do meu texto, é uma experiência maravilhosa.
      E o meu profundo agradecimento ao Jornal de Economia do Mar, por permitir a experiência.

  2. Manuela Crespo diz:

    Delicioso e cheio de humor. Por favor continua a enviar garrafas!

    1. Artur Manuel Pires diz:

      Muito obrigado, Manuela.
      Não imaginas como são importantes mensagens/comentários como os teus.

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